VIAGEM PELA Química

A surpreendente química do vinho

Como é que uma simples uva se transforma no “néctar dos deuses”? O poder da química entra em ação muito antes da vindima. E nem tudo depende do fruto.

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Surpresa dentro de uma garrafa

O vinho é uma mistura surpreendentemente complexa em termos químicos, e cada garrafa contém milhares de diferentes moléculas, que se traduzem numa vasta paleta de aromas e sabores.

Independentemente do seu preço, a maioria dos “néctares dos deuses” – segundo a mitologia grega, foi o deus Dionísio que ensinou os humanos a produzi-lo – são constituídos por cerca de 98% de água e etanol.

É, portanto, nos restantes 2% de compostos do vinho que a química exerce toda a sua magia. E esta combinação de ácidos, açucares, sabores voláteis (ou seja, que evaporam), compostos de aroma e de cor, e taninos, é afetada por muitos fatores que vão além do tipo de uva utilizado.

Tudo começa no tipo de solo e clima, e depende da altura da colheita, da forma de processamento, do período de fermentação e dos métodos de armazenamento utilizados. O resultado é muito variável, mas há componentes que podem ser controladas.

O doce contributo da uva

De acordo com a mitologia grega – que os romanos reproduziram chamando Baco ao seu deus do vinho – Dionísio gostou tanto do sabor das primeiras uvas que quis guardar algumas para mais tarde. Com o tempo, estas fermentaram e transformaram-se num líquido. Ainda que sem intervenção divina, terá sido o conhecimento deste processo químico de fermentação que tornou a Grécia Antiga a primeira cultura com uma produção vinícola profissionalizada e a criação de denominações de origem. Ou seja, zonas geográficas que determinam as características intrínsecas de um vinho.

Embora sejam usadas mais de 10 mil variedades de uva na produção de vinho, o perfil químico do fruto também depende da quantidade de luz e água a que está exposto, da velocidade a que amadurece, e das características físicas e químicas do terreno onde cresce. Tudo isto pode alterar a composição do mesmo tipo de uvas dentro até de uma só propriedade.

Regra geral, as regiões mais frescas produzem vinhos de sabor mais subtil porque as uvas amadurecem menos e mais devagar, resultando em menos açúcar e maior acidez natural. Já as zonas mais quentes dão origem a uma bebida mais encorpada: as uvas amadurecem mais e depressa, o que quimicamente resulta em níveis superiores de açúcares naturais e, por consequência, taxas de álcool mais elevadas.

Na altura da colheita, essas variações estão bem patentes nas uvas: 70 a 85% de água, 18 a 30% de glucose e frutose (açúcares), 0,3 a 1,5% de ácidos (tartárico e málico), e níveis inferiores a 1% de proteína e aminoácidos, e igual quantidade de polifenóis, flavonóis, vitaminas, minerais e taninos, entre outros compostos. Um cocktail químico que faz toda a diferença.

A evolução dos sabores e aromas

O vinho é um dos produtos em que a variedade é bem-vinda.  Os tintos das zonas mais frias tendem a exibir sabores mais ácidos, como de framboesa, cereja ou groselha, enquanto sob um clima quente o “bouquet” pode ser dominado por notas de ameixa, amora, pimenta e chocolate. No entanto, a maioria das moléculas do sabor, bem como a cor e os aromas finais, formam-se não na uva, mas durante a fermentação e o armazenamento.

Os diferentes tipos de levedura existentes em cada uva afetam o processo de fermentação – a transformação bioquímica dos açucares em álcool e centenas de outros compostos químicos que produzem sabores –, embora na maioria das vezes sejam adicionadas leveduras comerciais para acelerar o processo e, ao mesmo tempo, controlar o estilo e a qualidade do vinho.

Os sabores e aromas que provêm da uva ou dos barris de madeira usados para envelhecer o vinho não significam que este contenha mesmo chocolate, pimenta, ou amoras ou framboesas... O que acontece é que a bebida contém algumas das mesmas moléculas, ou combinações semelhantes a esses cheiros conhecidos, pelo que o cérebro identifica aromas e sabores com referências que lhe são familiares.

As notas frutadas podem advir de compostos chamados ésteres, produzidos pela levedura, enquanto as amanteigadas provêm de um composto chamado diacetil, que ocorre naturalmente na atividade microbiana durante a vinificação. Já os aromas a baunilha podem resultar do envelhecimento em carvalho, quando os químicos da madeira passam para o vinho. O armazenamento em barris tem ainda o potencial de alterar ou adicionar sabores ao vinho, ao permitir a entrada de pequenas quantidades de oxigénio que provocam mais alterações químicas.

A magia do enólogo

Identificar as moléculas de sabor e aroma no vinho é um desafio, tendo em conta o seu elevado número e o facto de estes compostos voláteis estarem presentes em quantidades muito baixas. Ainda assim, alguns narizes sensíveis – um dom para os enólogos e escanções – conseguem detetá-las mesmo quando se encontram apenas em concentrações de um para um bilião.

Embora a produção de vinho continue associada a uma imagem de tradição secular, o crescente conhecimento científico sobre as reações químicas que acontecem na uva e no vinho tem permitido fazer evoluir as práticas vitivinícolas, com vista a criar novos e melhores produtos. Já sabemos que a decisão sobre a altura da vindima influencia a carga alcoólica e o teor de açúcar, mas não só.

Por exemplo, a investigação do Australian Wine Research Institute para descobrir por que razão a casta Syrah que cresce em climas frescos dá origem a um vinho com sabor a pimenta preta, apontou que a concentração do composto rotundine aumenta com o amadurecimento da uva. Uma informação importante com reflexos práticos: os produtores podem agora gerir o momento da vindima para escolher o quão “picante” querem a sua criação.

Outras decisões têm igualmente influência no perfil do vinho, tais como a forma como a uva é esmagada. Uma vez que é nas sementes e nos caules que se encontram mais componentes amargos, retirar os caules ou fazer um esmagamento suave que deixe as sementes intactas pode evitar o sabor amargoso da bebida.

Mas, na realidade, a experiência de saborear algo tão complexo não depende apenas da ciência.

O consumidor contribui com o seu paladar e preferências pessoais e assume parte da responsabilidade através da harmonização da comida com o vinho que escolhe. É por isso que todas as oportunidades de degustação criam experiências químicas únicas e irrepetíveis.

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